O valor do trabalho autoral no futuro
Com o boom da Inteligência Artificial e um tsunami de conteúdo raso e genérico que vem por aí, será mesmo que o valor do trabalho autoral estará somente na produção 100% humana?
Em Conversas à Mesa, escrevo semanalmente sobre cultura, consumo e a lógica digital numa vida ainda analógica.
Marisa Maiô, a nova apresentadora da internet
Posso estar agindo como um idoso confuso com a tecnologia, mas nenhum meme ou piada na internet me fez rir tanto recentemente quanto alguns “cortes” do programa de “TV” da Marisa Maiô.
Pra quem ainda não conheceu, seu programa, assim como tudo nele, foi feito com auxílio de IA, usando as novas ferramentas de geração de vídeo (provavelmente o VEO) da Google.
Note que eu não mencionei que foi criado por IA, ou seja, um humano usou ferramentas de IA para gerar um programa de TV que só existe em frames de vídeo e bits digitais.
É aqui que está o ponto de partida deste texto. Eu ri muito, viralizou no Twitter e o autor foi dar entrevista até no Fantástico — quando escrevi o rascunho desta edição ele tinha feito só dois vídeos, agora fez até publi pro Magalu!
Assim como todo personagem — e, para minha tristeza —, a diva Marisa só existe a partir dos prompts do seu criador e artista: Raony.
Aqui permeia um debate bem atual que talvez seja resolvido com uma questão de sintaxe: arte criada por IA pode não ser arte; agora, arte criada com IA pode ser considerada arte?
Bom, Marisa Maiô está aí, provocando emoções reais através de uma mídia virtual.
Se não fosse o talento e o toque do artista, certamente ela não teria ganhado tal notoriedade e engajamento.
Em meio às risadas provocadas pelos cortes do programa, eu me senti desconfortável. Estava rindo de algo que eu, como artista, vinha criticando fortemente: o uso de Inteligência Artificial na produção artística.
Sinto que é hora de repensar alguns paradigmas, e, por isso, me motivei a colocar em prática um estudo de foresight e usar esse debate como ponto de partida.
Então, pega seu café e vem comigo, pois, nesta edição, vamos explorar o questionamento: o valor do trabalho autoral estaria vinculado unicamente à capacidade de produção humana? Ou será que o uso de novas ferramentas vai, de fato, desvalorizar o capital autoral?
Autenticidade vendida na forma de NFT
Em 2021, houve um outro boom na tecnologia que misturava, num mesmo lugar, o puro suco da FOMO, criptomoedas, especulação e redes sociais.
Os NFTs (non fungible tokens), nome popularmente atribuído a ativos digitais com certificados únicos de autenticidade via blockchain, tiveram seu boom ao serem uma alternativa para “democratizar” o comércio de arte digital e garantir ao artista os direitos de autoria sobre imagem, música, texto etc.
Eu, que não queria ficar de fora desse conceito, decidi tentar vender meus quadros em aquarela como cópias de alta qualidade, distribuídas em edição limitada.
Logo percebi que aquilo tudo era mais especulação do que arte ou apoio aos artistas.
Enquanto eu ficava cerca de 8 horas entre fazer meus quadros e colocá-los digitalmente disponíveis à venda, havia milhares de "artistas" criando centenas de peças por dia utilizando imagens feitas por IA ou programas de criação digital.
A competição era desleal — ainda mais para quem estava começando.
Independentemente da dinâmica frustrante do mercado de arte, quando estava imerso nesse contexto, percebi uma segunda dinâmica que se manifestava ali e que hoje está ainda mais forte: a importância da narrativa e da criação de comunidades.
No Twitter, via-se uma enxurrada de perfis com foto de macaco, os Bored Ape. Todos queriam tê-los em sua foto de perfil. Sempre havia um novo, nos mais diversos skins.
A questão nesse movimento não era sobre a qualidade da arte de um desenho estilo cartoon de um macaco usando roupa de marinheiro.
Os usuários usavam a foto de perfil do Bored Ape como símbolo de pertencimento àquela comunidade e compartilhavam o status e a narrativa do autor: em 2031, os investidores do início do mundo cripto — agora bilionários — estão entediados e decidem se reunir em um misterioso “swamp club” com macacos, para se divertir e sair da mesmice.
Independentemente da identificação com essa comunidade, o que essa experiência me revelou — e só agora consigo enxergar — é que o meio digital já vinha sinalizando, bem antes do boom da IA, uma transformação silenciosa: a ampliação do espectro de atuação da arte e do artista, e o quanto isso transcende o objeto em si.
Foresight e estudos sobre o futuro
Voltando ao presente, a "arte gerada por IA" pode até ser “perfeita” (em termos de traço, reprodução, cores), mas o valor do conteúdo e sua beleza estão ligados somente ao fato de sabermos que ele foi produzido integralmente por humanos?
Essa pergunta foi a base para um estudo pessoal sobre as perspectivas que o trabalho autoral, artesanal e artístico tem em face do surgimento de tecnologias que tiram, cada vez mais, a ação humana da produção e criação de arte.
Nota
Eu trabalho com estratégia, marketing, vendas e clientes, então decidi incrementar minhas competências técnicas com os Estudos sobre o Futuro — Strategic Foresight.
Este texto nasce como consequência desse aprendizado e como forma de responder a alguns questionamentos que foram origem de frustração na minha jornada de produção artística.
Com base nesse estudo, eu queria exercitar a visão de como e onde estaria o valor da criação humana daqui uns 10 a 15 anos.
As tendências atuais mais fortes apontam, na maioria, para o mesmo lugar: o conteúdo autoral será um luxo. O material produzido integralmente por humanos será escasso — e, consequentemente, mais caro.
Mas isso me soava meio vago, pois já temos muita coisa feita por IA por aí, e está cada vez mais difícil encontrar artistas que estejam conseguindo começar de forma orgânica e ter reconhecimento e retorno financeiro unicamente por produzir tudo de forma "analógica".
Forças direcionadoras
Durante esse estudo, percebi efetivamente que temos forças impulsionadoras que validam algumas dessas tendências.
Principalmente nos aspectos sociais da análise, quando falamos de uma fadiga da IA entre os consumidores e de uma constante busca por autenticidade, conexão emocional e toque humano.
Olhando sob outros aspectos — como tecnológicos, econômicos, políticos e legais —, vemos questões que surgem por duas óticas: a do artista e a do consumidor.
Começando pelo consumidor, temos uma visão mais passiva — afinal, a tecnologia vai entrando na rotina sem nem percebermos.
Temos o avanço da tecnologia com IA generativa borrando a linha entre o real e o artificial e, com isso, a economia de criadores usando e acelerando a produção de conteúdo e até mesmo a normalização do conteúdo artificial em nossas vidas e rotinas.
Além disso, a própria Google tem como estratégia inserir a IA em todos os seus produtos para que a adesão seja “mais orgânica”.
Para os artistas e criadores, outros temas de interesse começam a ganhar força.
Plataformas usando tecnologias de detecção e selos de autenticidade, novos modelos de monetização colaborativos com uso de IA, dilemas sobre propriedade intelectual e políticas públicas para suporte e regulamentação e, por fim, a valorização de experiências reais, humanas e imperfeitas.
Essas forças, por mais embrionárias que sejam, nos apresentam direcionamentos fortes sobre os caminhos que as tendências seguem.
Sinais fracos e Cartas Coringa
Apesar de estarem menos representadas, e de não termos tantos holofotes virados para o assunto, começaram a surgir movimentos anti-IA e boicotes a plataformas que não se importam com a origem do conteúdo.
Alguns movimentos estão em constante debate sobre novas formas de criação de arte indetectáveis por IA e difíceis de serem reproduzidas.
Vemos o surgimento de redes circulares e pequenas comunidades de nicho para conteúdo, arte e artesanato ganhando força.
Quando as linhas entre o real e o artificial ficam borradas, recorremos a conteúdos de uma época sem IA — e surge um apreço maior pela nostalgia.
As Cartas Coringa são eventos de menor probabilidade, mas com alto impacto, que podem ocorrer e mudar ou redefinir algumas tendências.
Por exemplo, um eventual colapso de plataformas digitais, afundando sob um tsunami de conteúdo gerado por influenciadores e páginas artificiais, controlados por agentes de Superinteligência Artificial.
A linha tênue entre o real e o artificial
Já podemos sentir um tensionamento entre esse futuro que se aproxima e o passado que resiste à mudança.
Plataformas que flertam com autenticidade enquanto seus algoritmos amplificam conteúdo genérico. Artistas que usam IA como ferramenta e são questionados pela própria comunidade. Ou o público que busca conexão humana, mas clica no que viraliza.
Uma coisa é certa: a tecnologia vai evoluir, e será impossível distinguir um conteúdo feito por IA ou por um humano. Nesse quesito, a IA vai superar a técnica humana.
Minha avó perguntaria que horas passa o programa da Marisa Maiô na Band.
O verdadeiro desafio estará em revelar o que está nas entrelinhas — a emoção, o sentimento, a essência humana da obra, a criatividade e tudo aquilo que não se vê, mas se sente. E essa leitura não dependerá apenas do público.
À medida que o senso crítico coletivo enfraquece, será cada vez mais responsabilidade dos artistas, grupos e comunidades fazer esse valor emergir e ser compreendido.
Para que o valor do autor não fique — e continue — nas mãos de quem já domina as narrativas pelas lógicas de engajamento das redes, o caminho está no fortalecimento de comunidades que reconheçam e sustentem esse valor de forma genuína e mais restrita — o foco não será viralizar, mas sim ter um núcleo forte, próximo e engajado.
Diante desse cenário e das tendências que se desenham, lutar contra esse movimento e apostar que o público, por si só, reconhecerá o valor daquilo que foi feito 100% por humanos é como remar contra a maré e acabar tragado pelo tsunami que já avança sobre os artistas.
Criar, Capturar e Sustentar o Valor
Assim como hoje, a narrativa será dominada pelos centros de influência, que visam, a todo momento, direcionar e conduzir as perspectivas de valor para os interesses dos acionistas.
Sempre vai ter mercado pro consumo raso, genérico, produzido em massa e que tem uma estética de quem faz publi de Bet.
Nesse caminho, o criador, artista e autor não deve negar o valor da tecnologia, nem se blindar da experimentação e da criação.
Vejo que o caminho está em entender esse contexto e criar valor por meio de uma vivência autêntica, com tempero próprio, que comunique com a comunidade que está em torno e realmente suporte esse conteúdo.
Esse público está crescendo, porém anda esbarrando em recomendações de algoritmos viciados no mainstream e acaba não encontrando o que valoriza de verdade.
Ao passo que temos o avanço irreversível da tecnologia e sua entrada em todos os âmbitos da vida humana, inclusive a criação e a arte, temos também uma necessidade muito forte e instintiva de manter a conexão e a essência humana.
O artista, ou criador, que entender essa dinâmica e se posicionar dentro desse espectro, sem se prender aos extremos, provavelmente poderá extrair mais valor da sua produção.
No entanto, esse valor não nasce apenas do apego à ideia de uma criação 100% humana.
No momento em que não conseguirmos distinguir o real do artificial com base em atributos e aspectos observáveis (traço, palavra, notas musicais), a humanidade da criação estará em outra camada mais subjetiva: emoção, sentimento, conexão.
Caberá ao artista não apenas criar com intencionalidade, mas construir uma narrativa autoral que atue justamente nessa camada invisível — onde mora a emoção que conecta, o sentido que reverbera, a memória que permanece.
Ele precisará ser, ainda, um agente capaz de fazer ecoar esse valor para as comunidades que se reconhecem na obra e partilham um senso genuíno de pertencimento.
O artista vive a cultura, sente suas camadas, respira seus ruídos e transforma tudo isso em expressão — justamente o que as marcas e os centros de influência tentam copiar e monetizar a todo momento.
Em um mundo saturado por simulacros perfeitos, é ele quem pode resgatar o imperfeito que nos torna humanos.
Seu papel não estará restrito somente à produção, mas em tensionar o presente, provocar conexão e sustentar significado onde o algoritmo só oferece distração.
Muito mais do que produzir algo 100% artesanal, o papel do artista será, cada vez mais, o de ser um estrategista narrativo, curador de sentido e, principalmente, interlocutor entre o humano e o ruído digital.
O valor não será dado — ele será construído, disputado e sustentado em comunidade.
Conheça as Conversas no Corredor
Venha conferir minha outra newsletter que uso para falar dar dicas e falar sobre temas do mundo corporativo que todo CLT deveria aprender.
São aquelas conversas que eu gostaria de ter tido com meu gestor ao longo da minha carreira — insights que fazem a diferença, mas que nem sempre surgem em reuniões ou treinamentos formais.
Por isso, chamei de Conversas no Corredor: aprendizados que acontecem naquele papo despretensioso enquanto tomamos um café.
Iniciei uma série sobre inteligência Emocional de 5 episódios que deixarei gratuita até seu término, então corre aproveitar!