Não é só o ovo de Páscoa: tudo está ficando pior e mais caro
Como a lógica do lucro tem transformado produtos, serviços e experiências em versões caras e piores. Estamos mesmo pagando por mais? Ou só recomprando o que já era nosso, agora em versão premium?
Toda Páscoa a mesma conversa: “a barra de chocolate vale mais a pena do que o ovo”.
A receita é sempre a mesma: Muito preço para pouco chocolate, e ultimamente, menos sabor e qualidade. Foi por isso que este ano eu não comprei chocolate em formato de Ovo, de qualidade inferior, super recheado, inflacionado e criado em torno de um feriado religioso/comercial.
Seja por economia ou rebeldia, decidi ficar de fora e trocar o ovo pela presença, por conversas e por um bolo gelado feito e compartilhado em casa.
Foi assim que surgiu a ideia desta edição. Enquanto estávamos à mesa tomando café, alguém mencionou o preço abusivo dos ovos, uma coisa puxou a outra e acabamos refletindo sobre a baixa qualidade dos itens que compramos em geral.
Sejam produtos, serviços ou experiências, todos tivemos a percepção de uma queda de qualidade. Pagamos por produtos gourmet e recebemos açúcar e aromatizante; por assinaturas Prime e recebemos o serviço básico, e agora até para ver uma série temos que pagar para não ver propaganda.
Nos últimos anos esse efeito tem se acentuado e parece que as empresas nem têm mais vergonha de criar barreiras e novas dores dentro dos seus produtos para oferecer outros novos, mais caros, que resolvem um problema que elas mesmas criaram.
Por isso, decidi abrir mais uma edição de Conversas à Mesa dessa semana trazendo lentes para esse efeito econômico: a queda de qualidade como resultado de um consumismo constante. Com a máxima de criar produtos e serviços para facilitar nossas vidas, as empresas têm usado de artifícios econômicos e emocionais para cobrar mais e entregar menos.
Senta aí, pega um café, e vamos de conversa. Afinal, será que temos alternativas que valem a pena ou somos reféns de produtos e serviços ruins?
Onde tudo começa?
Com metas de crescimento constante, fica “difícil” para as empresas manterem o ritmo num contexto econômico que não acompanha essa ambição. Ou seja, o poder de compra do consumidor não cresce na mesma velocidade que as metas impostas pelos acionistas.
Diante de crises globais, instabilidades políticas e os dilemas que vemos todos os dias nos noticiários, quem carrega o peso para sustentar a hegemonia do Rei, nesse xadrez capitalista, são sempre os peões.
Assim, as empresas encontram formas de continuar crescendo em uma economia capitalista, tudo pelo bem do mercado e do capital.
Como consumidores, sentimos os efeitos disso. Para manter as alavancas clássicas de crescimento e lucro — redução de custos, aumento de preços ou expansão da base de clientes — muitas empresas recorrem a artifícios nem sempre visíveis à primeira vista.
No caso do preço, ele é o único que não depende apenas de uma conta objetiva. Ele precisa ser justificado por algo que gere valor percebido: mais qualidade, maior quantidade, inovação, diferenciação… a não ser, claro, que a empresa atue com commodities como aço, café, petróleo ou minério, onde o mercado dita o valor.
A Apple é um caso clássico de como alavancar preços com base na percepção. Existem diversos smartphones no mercado com especificações técnicas semelhantes, ou até superiores, aos iPhones. Mas o valor da maçã vai além do hardware — matéria sobre o custo de fabricação de um iPhone.
O que sustenta essa margem mais alta é o Branding: a construção contínua de percepção de valor, alimentada pela marca e reforçada pelos próprios consumidores.
Com uma marca forte, os preços praticados não se baseiam apenas na qualidade objetiva do produto. Eles atravessam o campo psicológico e social. O produto passa a carregar significados e o consumidor, ainda que racionalmente consciente, associa parte de sua identidade àquilo que consome.
É nesse campo subjetivo da percepção de qualidade ou atributos do produto que está a mina de ouro para as empresas. Dominar bem esse campo é garantia de crescimento acima das metas e da inflação!
Como essa estratégia está se fortalecendo ultimamente
Os monopólios criaram ambientes onde sair do sistema é quase impossível. Não é só uma questão de escolha individual. É uma questão de estrutura. E, nessa estrutura, o consumidor está cada vez mais sozinho.
Alguns exemplos de como esse processo veio se instalando em nossas rotinas e nem percebemos — ou ignoramos.
Feriados comemorativos (para o comércio)
Nessa época de Páscoa, fui atingido por muitos conteúdos sobre Ovos e chocolate. Não faltaram marcas surfando a onda do pistache. E também, não faltaram consumidores reclamando.
Quem não se decepcionou com algum ovo de pistache, não viveu essa Páscoa direito. Confeiteiros e consumidores, não patrocinados, desmistificaram o hype de algumas marcas que dizem dar “show” na qualidade.
Recheios que só funcionam na propaganda renderam vários vídeos de review sincero. Esse movimento não é novo, mas nessa Páscoa superaram milhões de views.
Streaming ou TV aberta por assinatura?
O caso dos streamings é talvez o exemplo mais gritante — e recente — dessa engenharia comercial.
Plataformas que por anos prometeram um serviço sem interrupções, agora inserem anúncios no meio dos episódios, exigindo um novo plano, mais caro, para retomar aquilo que antes já era parte do pacote.
E não estamos falando de um movimento isolado. Netflix, Amazon Prime, HBO Max, Disney+: todas caminham no mesmo rumo. Elas nem se preocupam em disfarçar ou se justificar.
Percebi isso com a HBO, que no meio de um filme começou a exibir propagandas. Mais recentemente, com a Netflix, recebi o aviso de que, se eu não quisesse ver anúncios, teria de assinar um plano mais caro.
Assim, há apenas a constatação de que o lucro precisa crescer — e a experiência, diminuir. Estamos sendo obrigados a pagar mais para assistir ao que já foi oferecido como mínimo.
Confira a matéria: Plataforma de streaming impõe anúncios e cobra taxa extra para removê-los no Brasil
A VIPzação dos eventos como diferenciação
Essa tendência, no entanto, não nasceu no mundo digital. O que está em curso é um processo de precarização deliberada. Uma escolha estratégica para criar nichos, elevar margens e ampliar diferenciais competitivos.
O problema é que, para cada produto de "valor agregado", há um serviço básico que foi esvaziado até o osso. O YouTube, por exemplo, que sempre foi gratuito, hoje se sustenta em propagandas cada vez mais invasivas — ou em planos pagos que prometem devolvê-lo ao que era antes: limpo, direto, fluido.
Até mesmo nesses planos pagos, alguns anúncios ainda escorregam. O "premium" virou promessa nunca cumprida.

Eventos e festivais seguem a mesma trilha. Os grandes shows tornaram-se laboratórios de segmentação social em tempo real. Quem paga menos vive a experiência do aperto, da fila, do banheiro químico sujo e de sol na cabeça.
Quem pode pagar mais fura fila, ganha área coberta, banheiro decente, assento garantido e até uma coxinha fria e uma água. Os influencers convidados ajudam a disseminar esse desejo com seus VIPs de permuta.
No fundo, a experiência comum virou punição. Assim, fica mais fácil justificar a precificação do VIP com base no abismo de qualidade entre o ingresso comum.
Os ingressos VIP deixaram de ser sobre conforto para se tornarem símbolo de separação. O festival ou evento, que prometia unir, agora segrega.
Voar e o preço da bagagem extra
E para pegar um avião com qualquer empresa aérea: o assento apertado, a bagagem cara, o check-in demorado. Hoje, até para escolher o assento você paga. Tudo foi se deteriorando e a recuperação de qualquer conforto virou produto ou oportunidade de monetização.
O que antes era normal, hoje custa caro. E nós aceitamos. Talvez com alguma reclamação, mas quase sempre com resignação.
Afinal, boicotar pra valer é privilégio. E para isso precisamos ter alternativas, que em muitos mercados, elas foram estrategicamente eliminadas. As opções minguam, os preços sobem, e a margem das empresas cresce — ao custo da experiência do consumidor.
Talvez haja alguma esperança, pois enfim temos sinais de queda na demanda de passagens, o que pode ser um alerta para empresas voltarem a focar em fornecer serviços justos para seus clientes. Confira aqui essa matéria da CNBC.
As empresas estão erradas em querer crescer?
Em uma lógica capitalista, elas estão jogando com as regras. Precisam crescer para ser rentáveis e assim assegurarem um retorno ao capital investido pelos acionistas.
Por exemplo, se investimos em ações de uma empresa na bolsa de valores queremos que ao longo dos anos nosso investimento tenha aumentado. Somos acionistas nesse processo, mesmo que minoritários.
Temos pouco ou nenhum poder de decisão frente aos acionistas majoritários e fundos de investimentos que operam nesse sistema. Porém, ambos possuem o mesmo interesse — tomando as devidas proporções — o lucro: a bússola do sucesso e a vaca leiteira do capital.
Então, seria hipocrisia dizer que as empresas devem pensar unicamente nos bem estar dos clientes fornecendo produtos baratos a um preço justo. Afinal, é justamente essa lógica que move as empresas na direção de melhorar seus produtos e serviços como diferencial para atrair mais clientes.
No entanto, notamos que essa lógica vem extrapolando alguns limites de crescimento, tornando as empresas verdadeiros oligopólios de tecnologia e poder.
Tecno-feudalismo
Quando falamos em setores de tecnologia não vemos a mesma quantidade de marcas para cada produto como encontramos em uma prateleira de biscoitos no supermercado.
Se falamos de marcas de celular, aposto que conseguimos lembrar de três ou quatro no máximo. Marcas de redes sociais? Outras três ou quatro (alô Substack!). Aplicativos de Marketplace? Delivery? Transporte? A lista sempre é curta — poucos players e muito poder concentrado.
Não quero aprofundar o conceito, mas há economistas e teóricos dizendo que estamos saindo do capitalismo e entrando na era do Tecno-Feudalismo Digital (confira esse artigo de O Globo).
Nesse modelo, as grandes empresas se concentram para formar conglomerados digitais de maneira que conseguem controlar as atividades sociais e até políticas.
Assim como o senhor feudal detinha o poder sobre o feudo e cobrava impostos altíssimos para quem quisesse produzir em suas terras, as plataformas digitais estão se consolidando de tal maneira, que não há alternativa para os usuários estarem nelas sem ter que pagar.
Isso sem falar em lobby e outras questões políticas que ficam cada vez mais salientes. Pois, não é de agora o movimento de empresas fomentando alterações de leis para flexibilizar sua atuação.
Existe muito avanço que foi feito com a regulamentação adequada, no entanto esse viés toma outra direção quando governos autocráticos estão de mãos dadas à$ grande$ corporaçõe$.
Inovação!(?)
O que me incomoda nesse movimento não é que as empresas estejam inovando para continuar crescendo, assim como elas clamam em Summits de tecnologia, mas sim o fato de usarem a imagem da inovação para disfarçar suas ações de produtividade.
A velocidade da inovação vai ser proporcional aos investimentos disponíveis. Porém, quando os dividendos viram prioridade, as tendências econômicas não se mostram positivas e recursos para investimento ficam restritos, então só sobra uma alternativa: projetos para reduzir custos e aumentar preços.
Vemos uma inovação incremental voltada a projetos de melhoria, em vez de uma inovação disruptiva para o desenvolvimento de novos produtos e soluções.
E nessa corrida por resultados, o que se apresenta como inovação é, muitas vezes, só a devolução do básico — agora em formato premium.
Esse fenômeno tem nome: Skimpflation (ou Econoflação). Trata-se do movimento de piorar a qualidade e manter o preço.
Por exemplo, a bolacha com recheio de sabor chocolate em vez de chocolate puro. A Passatempo usou da nostalgia para relançar a “receita original”.
A inércia do consumidor
Pela falta de transparência e artifícios de marketing usados pelas empresas, os efeitos desse modelo são suavizados aos olhos do consumidor médio. Sem as lentes certas, não percebemos o que há por trás das intenções e estratégias.
E assim, pouco a pouco, vamos normalizando esse comportamento.
Aceitamos que um serviço de transporte inclua esperar por um carro que nunca chega — mas se você pedir um black ou assinar o premium tem um do seu lado.
Aceitamos que a entrega "expressa" leve uma semana — mas se você for membro prime seu item chega em menos de 24h.
Aceitamos assistir ao mesmo comercial cinco vezes no intervalo de um episódio — mas se não quisermos podemos pagar mais para uma experiência sem propaganda.
Aceitamos que a privacidade dos nossos dados seja moeda de troca por serviços "gratuitos" que nos monitoram em cada clique — mas podemos declinar os termos de serviço e não estar no mesmo ambiente digital que todos amigos e familiares.
Tudo isso porque, no fundo, fomos convencidos de que é assim que o mundo funciona agora.
Segmentação de clientes e da sociedade
Quando não há mais clientes novos ou corte de gastos, o jeito é tirar mais dos clientes que já existem. Esse problema se aprofunda quando percebemos o impacto psicológico e social dessa lógica.
Pois conforto virou item de luxo. Silêncio virou item de luxo. Tempo, então, nem se fala. Aquilo que deveria ser garantido como padrão passou a ser reconfigurado como exceção.
As empresas, sob a desculpa da personalização, vendem essa exceção como privilégio. Segmentando a ponto de transformar o básico em desejo.
E aqui mora o engano: confundimos status com valor. Achamos que estamos pagando por algo melhor, quando na verdade só estamos recomprando aquilo que já tínhamos.
E essa é a falácia da inovação atual. A cortina de fumaça perfeita para encobrir a ausência de novos produtos, novas ideias, novas entregas. As empresas estão reinventando o passado e vendendo como futuro.
É uma ilusão coletiva, alimentada por interfaces modernas e discursos corporativos otimistas. E de novo, na teoria elas não estão erradas. Mas sobre qual perspectiva: Moral ou Econômica?
O cenário exige novas perguntas: até quando aceitaremos pagar mais para ter menos? A única solução é aceitar esse movimento de VIPzação do básico e pagar mais pelo mínimo?
E o mais importante, que tipo de sociedade estamos alimentando ao permitir que o essencial seja privatizado em nome do lucro? Estamos assistindo à transformação do básico em privilégio. E aceitando isso como progresso.
Em face a crise global atual, a separação, polarização e segmentação dos indivíduos é o mecanismo de controle de massas mais eficiente. As empresas segmentam seus clientes para extrair mais resultados. Buscam sempre o High-ticket para tirar mais lucro e esses clientes se sentem especiais por fazerem parte desse nicho.
Adivinha quem sofre as consequências ruins de tudo isso? Dica: Não são os milionários ou bilionários.
Contra a maré do consumismo passivo
Acredito que ao enxergarmos a vida com as lentes adequadas, criamos consciência para agir de alguma forma. A inércia não ajuda, afinal já dizia o ditado “camarão que não nada, a onda leva”.
Sempre existem interesses ocultos por trás de ações políticas e econômicas — e esses dois andam juntos até demais!
Não digo que a solução seja a alienação e isolamento. Estamos dentro de um sistema, e precisamos dele. No entanto, se a consciência coletiva partir rumo aos seus interesses e não das corporações, então assim podemos ter uma perspectiva mais positiva para quem não detém o poder.
Lembrando que a receita do crescimento e lucro tem uma parcela totalmente vinculada ao consumidor. A margem pode ser elevada, mas se zero pessoas compram, então o resultado é nulo.
A única arma que ainda temos a nossa disposição são as escolhas. Podemos tomar decisões mais embasadas e menos impulsivas, principalmente no que diz respeito ao consumo (telas, produtos e serviços).
Somente assim, podemos gerar algum movimento que olhe para o usuário e não somente para os resultados. Existem vários movimentos atuais que têm deixado alguns segmentos de mercado preocupados.
O Project Pan é um ataque direto à indústria de cosméticos. Ninguém precisa 20 bases diferentes. Porém, assim como toda trend de internet é moda, seus efeitos em massa acabam sendo passageiros.
Desenvolver um senso de consumo mais responsável e consciente é o primeiro passo para não sermos somente pões descartáveis nesse xadrez do capitalismo. Se a jogada for bem pensada, até os peões podem dar xeque-mate.
Conheça o Conversas no Corredor
Criei uma newsletter para falar sobre temas do mundo corporativo que todo CLT deveria aprender. São aquelas conversas que eu gostaria de ter tido com meu gestor ao longo da minha carreira—insights que fazem a diferença, mas que nem sempre surgem em reuniões ou treinamentos formais.
Por isso, chamei de Conversas no Corredor: aprendizados que acontecem naquele papo despretensioso enquanto tomamos um café.
Se quiser acompanhar, já pega o seu café e vem comigo! 🔥💼
Se liga nesse texto publicado:
Caramba, tem um episódio dessa última temporada de Black Mirror que encaixa PERFEITAMENTE nessa sua fala, é o Pessoas Comuns (T7 E1). É uma crítica aos serviços de streaming, ou cartões gold/platinum/diamont, que vão te obrigando a pagar cada vez mais por serviços extremamente básicos (e muitas vezes, mal feitos).
Acredito fortemente no boicote, por mais que exista a “illusion of choice”. Exemplo: prime vídeo hoje é um catálogo de filmes antigos gratuitos e dezenas de canais pagos .
Vou ficar com o Kindle Unlimited, mais barato e muito mais cultural
Todo esse lixo de comida? Parei de comer, não compro mais, emagreci 37 quilos caminhando e comendo comida de verdade.
Não é o capitalismo, é a falta dele e muita preguiça, acho que aqui no Brasil, principalmente, tinha que ter mais gente investindo e pressionando na bolsa, no mercado